O ser-humano é uma tábula rasa que vai sendo preenchida através das experiências às quais é exposto, diria John Locke. Nesse quadro, a mente e o corpo de uma pessoa são como uma folha em branco, onde o conhecimento vai sendo escrito através das experiências cotidianas, autônomas e pessoais. Através do empirismo o livro da história de cada ser é escrito.
Essa noção dá a tônica do conto escrito nas próximas páginas. Uma história sobre o aprendizado e a coragem de construir uma vida em família, trabalhando e convivendo coletivamente através do artesanato, aprendido de maneira independente, por meio de vivências particulares, experiências pessoais favorecidas pela força de vontade e pelo acaso. Apesar do formato tradicional, esse documento luta para ser um amontoado de palavras capazes de apresentar ao leitor a égide e assentamento da Vila Barroló, partindo da abordagem da caminhada de seu fundador, o mestre ceramista Antônio Cleofas de Oliveira Bezerra, até a desaguar na Vila Barroló e sua inseparável lida com a terra.
Este texto pretende imaginar uma história, narrar fatos, criar vínculos teóricos com o passado e reforçar a ideia de que o conhecimento viaja através de gerações, como a raiz de uma árvore que, em busca dos lençóis, articula-se ferindo a terra e tomando força para crescer e produzir seus frutos. Esta é a biografia da formação de um rio.
A Associação Familiar de Artesãos Ceramistas Vila Barroló é uma comunidade rural localizada no limite entre os municípios de Veríssimo e Conceição das Alagoas, nas reformadas Fazenda Boa Vista e Capão da Onça. O sítio onde está colocada, com 25 hectares, foi parar nas mãos de Cleofas e Anita na década de 1990, quando receberam de Maria Dolorita Fernandes Braga e José Arlindo Braga, pais de Anita, o imóvel rural através de doação. Anita se tornou usufrutuária e o sítio foi posto no nome dos 15 filhos como parte da divisão de uma herança familiar.
O território tem a particularidade de estar instalado na fronteira entre dois municípios, com uma parte do terreno em Veríssimo e outra em Conceição das Alagoas. Apesar de a maior parte estar alocada na primeira cidade, as relações culturais, comerciais, políticas e sociais são feitas maiormente com a segunda. Embora o sítio pertença à família desde 1993, considera-se que a fundação efetiva da Vila Barroló se deu somente no momento em que a família como um todo decidiu deixar os compromissos que os vinculavam à cidade para se mudarem para roça. Por esse motivo, os moradores entendem o ano de 2009 como data inaugural da comunidade. Nesta data, além das pessoas, foram também o maquinário, as ferramentas e matéria-prima de produção em cerâmica. Na ocasião, mesmo o galpão, sob o qual as peças eram produzidas na cidade, foi levado pra lá. A decisão de migrarem para o campo para inaugurarem uma nova vida, em detrimento das atividades e costumes que tinham na cidade, oportunizou a fundamentação das bases culturais e filosóficas sobre as quais a comunidade se sustentaria.
Aqui, o conhecimento e vivência empíricos de Cleofas tornaram-se um grande referencial. Não só pelo fato de a ideia de viver em comunidade ter surgido dentro de si antes mesmo de constituir a família, mas, maiormente, pela força da representativade de sua experiência, que fluía desde a infância até se apresentar como um rio formado na vida adulta. A vida na zona rural oportunizou uma dedicação integral e diretiva aos conceitos e princípios que o artesão vinha descobrindo e praticando ao longo de sua existência, mas que não podiam ser plenamente experimentados frente à realidade sistêmica do “tudo posto” e a vida urbana. No campo, o trabalho no atelier junto da família, a transmissão de conhecimentos do barro para gerações futuras, a relação com a terra e as águas através do plantio, da bioconstrução e da pecuária, vieram legitimar a condição de Cleofas como artesão de sua própria realidade. Da criança oriunda de uma realidade seca ao Mestre Ceramista cercado de abundância. Ao seu lado, filhos, águas e árvores abundam e a Vila Barroló tornou-se uma obra conhecida e admirada, mas que a somente suas mãos pertence a gênese. Criador e criatura.
Nos 10 anos subsequentes à gênese da Vila, outras mãos foram se unindo à de Cleofas e a obra tomou corpo próprio através do pensamento sobre as noções de coletividade, liderança flutuante e trabalho colaborativo. O aumento dos membros da família com o casamento dos filhos e nascimento dos netos apresentou uma realidade de aumento populacional exponencial e as responsabilidades e deveres cresceram junto. A demanda pela criação de soluções foi atendida através de muita dedicação e pesquisa, que fez também despertar nos moradores da comunidade o ímpeto pela produção cultural em fotografia, cinema, teatro, música, dança, capoeira, na elaboração de vestuário. Dentre os temas que receberam maior dedicação por parte do grupo, de acordo com a disposição, experiência e formação de cada membro, destacam-se a bioconstrução, a agricultura familiar, os tratamentos de saúde humanizados e o processo de escolarização não-formal.
Estes termos, no entanto, são calejados pelo seu uso corrente e não abrangem de maneira plena a experiência do referido grupo. Quando falamos hoje em bioconstrução, pensamos em um conceito e imagens pré-definidos. Assim como agricultura familiar, parto humanizado, comunidade sustentável etc. Há estereótipos sobre tais movimentos que direcionam nosso entendimento sobre seu significado. A mídia e o capitalismo se encarregam de minimizar a carga funcional desses campos através da exploração e capitalização irresponsabilizada de seus elementos, produzindo e comercializando situações como a de um parto humanizado num quarto esteticamente elaborado de acordo com imagens que encontramos em revistas, filmes e novelas e documentado em vídeo por profissionais da área que produzirão imagens bem elaboradas e iluminadas para, enfim, transfigurar a experiência real por detrás do termo numa obra de ficção científica.
No caso da Vila o critério de adoção de um termo ou de um campo de trabalho e ação é tido através do acesso à informação, sua deglutição e digestão, que desencadeia um processo semelhante ao da formação de um rio. O conhecimento não é replicado sem antes se tornar parte da própria experiência do indivíduo por detrás (à frente) da ação. Desse modo, cada uma dessas instâncias é de algum modo recriada, repensada e reelaborada com a finalidade de esmiuçar o conceito e eliminar replicações infundadas ou fora de contexto.
Tendo como figura de exemplo a construção de casas na Vila Barroló com técnicas de bioconstrução, podemos entender melhor esse processo. A bioconstrução oferece várias técnicas acessíveis e funcionais para feitura das paredes, como o adobe, super-adobe, tijolo ecológico, taipa, pau-a-pique etc. Contudo, a aplicação dessas técnicas demanda o uso de matéria-prima carente no território – areia, terra, sacos de linho, dentre outros – sendo o solo da Vila formado maiormente por cascalho, material pouco adequado às técnicas mais comuns de bioconstrução. O termo bioconstrução não se aplica apenas à utilização de materiais alternativos e naturais para realização de uma obra, mas, sobretudo, prescinde que o realizador disponha destes materiais ao seu alcance. A deturpação do conceito é promovida justamente pelo grupo que descontextualiza sua significância através da comercialização de materiais e modos de fazer. Desse modo, em lugar de adotar um modo de operar alheio à sua própria realidade, seus habitantes se debruçam sobre o desenvolvimento de técnicas construtivas próprias que utilizem materiais de baixo impacto ambiental, adaptando-se ao clima local de modo sustentável e econômico, a fim de praticar os fundamentos da bioconstrução e combater um envolvimento superficial que poderia desencadear uma replicação de estereótipos e caricaturas de moradias pouco funcionais.
A produção de conhecimento dentro da comunidade, bem como sua preservação e transmissão, são marcados por um ritmo e uma lógica próprios. Muitas vezes agentes externos buscam imprimir outros ritmos e lógicas aos seus processos produtivos, sem considerar que esses conceitos são estruturados com base nos princípios de autonomia, liberdade e com conceitos e modos de operar próprios. Tais elementos são hoje entendidos como uma das principais forças motrizes do ideário barrolense e, certamente, o estofo teórico que justifica uma busca ativa por parte da comunidade, da sociedade, da mídia nacional e internacional em conhecer e registrar as produções e histórias de seus moradores.
Assim como a certificação como Ponto de Cultura, a fundação da Associação Vila Barroló também representou um grande avanço na formalização da comunidade enquanto organização sem fins lucrativos, assim como na relação com a sociedade civil e o poder público. Juntamente à formalização documental, foi desenvolvido o Estatuto da Comunidade que proporcionou uma organização categórica dos desígnios e objetivos da Vila Barroló. Dentre eles destacam-se: a Preservar a tradição do trabalho artesanal familiar com o barro; Promover o desenvolvimento social, cultural e econômico das famílias da Comunidade Vila Barroló e das famílias da região. Combater a miséria e a desnutrição, pelo incentivo à prática da agricultura familiar, com acesso à informação, internet de qualidade e desenvolvimento de sistemas alternativos agropecuários de produção biointensiva, disseminação da produção de artesanato como fonte de renda às famílias, e; Realizar o bem comum, solucionar problemas e atender e impulsionar as aspirações da comunidade.
Por fim registramos que somos e nos auto-declaramos uma Comunidade Tradicional de Artesãos de Barro porque entendemos o nosso trabalho e vida como resultado de um conjunto de práticas ancestrais que foram sendo compartilhadas e preservadas através da memória de nossos familiares e que temos o direito e o dever de manter e estimular. Somos o fazer artesanal de barro do nordeste de Minas Gerais, através do aprendizado com a artesã Maria Bezerra e do contato com artesãos de Nanuque/MG > somos o artesanato de barro da região do triângulo mineiro, vivenciado por Cleofas com artesãos locais > somos resultado do aprendizado e da influência das técnicas pré-cabralianas dos índios agricultores da região do Sertão da Farinha Podre > somos agricultores do artesanato de barro tradicional, feito na roça, em família, geração após geração.
Desse modo a Vila Barroló se tornou uma iniciativa que desenvolve e articula atividades culturais diversas em sua região, contribuindo para o acesso, a proteção e a promoção dos direitos, da cidadania e da diversidade cultural no Brasil. A liberdade de envolvimento com o conhecimento dentro da comunidade, que produz um conjunto de dados pessoais de diferentes prismas, dão corpo à uma espécie de caldo cultural diverso e profuso. Disso decorre que, mesmo tendo os 15 filhos nascidos com as mesmas condições de educação, contexto social e econômico, a mesma trajetória, com experiências vivenciadas conjuntamente, a relação particular com o saber será distinta, dando forma a diferentes modos de comportar e de internalizar o mundo à sua volta.
O conjunto dessas vivências dão forma a uma trajetória de aprendizado que se funde ao processo artesanal começado com Maria Bezerra e passado adiante para seu filho Antônio Cleofas. Através de suas experiências de aprendizado, este multiplica o conhecimento transmitido aos 15 filhos e assim sucessivamente, dando forma a um repertório de saberes e memórias, atualmente aprendido e vivenciado pelos netos. Frente a esses aspectos, as produções de cerâmica feitas na Vila Barroló podem ser entendidas e analisadas como resultado de um conjunto de comportamentos, práticas culturais e contextos históricos diversos, que foram passados através das gerações sendo comunicados através das práticas oral, corporal e da memória de seus antepassados. A cada conexão advinda de experiências e assimilações distintas vivenciadas pelo indivíduo, o conhecimento é edificado. O conhecimento é cumulativo. Assim, segue atravessando as gerações através da cadeia de genes e memes e os saberes do fazer com o barro – porções específicas de conhecimento – sobrevivem ao tempo sem o arquivo, alimentados pelo repertório de práticas e conceitos difundidos por uma rede de agentes formadores e formandos através de suas performances de fala e movimento.
Somos uma comunidade familiar, sustentável, com aspectos culturais tradicionais e diferenciados. Reformado Atelier Antônio Cleofas (Uberaba). Formada por 40 pessoas entre crianças, artesãos, artistas e permacultores, instalada desde 2009 nos municípios de Veríssimo e Conceição das Alagoas/MG e que congrega três gerações de trabalho em cerâmica, tendo expandido nos últimos anos sua área de atuação, abrindo espaço para produção de conteúdos nas áreas do teatro, artes plásticas, audiovisual, música, fotografia, literatura etc. Nosso objetivo é promover uma vivência cultural no espaço em que habitamos que seja capaz de envolver os moradores e comunidades de nosso entorno em diálogos e ações autossustentáveis.
Vila Barroló - Fazenda Boa Vista e Capão da Onça - Zona Rural - Veríssimo - MG - CEP: 38.150-000 - Região: Triângulo